Birdman sob a luz e a sombra do fantasma da Ópera

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Em muitos aspectos da nossa vida cotidiana nos sentimos impotentes frente às situações. Quantas vezes não percebemos uma piora ao nosso redor, nos sentimos afundar em problemas, diluímos nossa subjetividade perante a falta de sentido e perspectivas de uma contemporaneidade cada vez mais vazia. Alguns diriam para procurarmos um analista, devemos estar com depressão. Concordo em termos, até quem nos nega o direito de sofrer hoje em dia vive meio deprimido. Não é preciso tomar antidepressivos ou sentar no divã para encontrar com o enorme buraco em que se encontra nosso ser, por trás dos sorrisos de nossas selfs, das quinquilharias que compramos, dos jantares, festas e viagens que postamos em nossas redes sociais, do carro do ano, do bom emprego, da família feliz, das aparências e ambições, é muito comum encontrarmos relatos de uma infelicidade mórbida. Ai é que está o vazio deixado pelo Real, um enorme vácuo sobre a nossa existência tão hipervalorizada de imagens, pressões e responsabilidades e tão carente de sentido. A fantasia, nesse caso, aparece como um sinal de saúde do nosso Eu; ela permite, ainda que imaginariamente, nos reconstituirmos e nos organizarmos frente à dor e o sofrimento desse insuportável Real. Um teto de vidro é verdade, mas que em sua fragilidade nos estrutura psicologicamente para seguirmos. Quando as coisas dão errado, quantas vezes não queremos explodir o mundo antes de nos comportarmos como avestruzes? Às vezes de fato excedemos os limites da mera vontade e realizamos nossos instintos reprimidos, quebramos a louça, jogamos vasos e atiramos os objetos que tivermos diante dos olhos pela janela; um ataque de raiva que supre a necessidade de destruição do Real. Outras vezes, só queremos ficar quietos, submersos na água como se ela pudesse dissolver nossos problemas e pensamentos, ou então, voar para longe, sentir o vento bater em nossos rostos, nos sentirmos livres verdadeiramente pelo fugir das correntes que aqui nos aprisionam. Esses desejos muitas vezes desafiam a nossa natureza, se pressupõe para além dela e nos dão alívio como uma tentativa desesperada de afirmação do sujeito morto na pós-modernidade. Como não podemos transcender a nossa natureza, projetamos nos superpoderes de heróis nós mesmos, um pedaço de nosso eu ideal, o como gostaríamos de ser. Por isso é que super-heróis fazem tanto sucesso.

Um super-herói de grande sucesso, pelo menos no filme de Alejandro Gonzalez Iñárritu, é Birdman. Como o nome sugere um homem pássaro. Não sabemos que cidade protege ou quais são seus poderes além de voar e o poder da mente, todavia chegamos a conhecer uma coisa muito mais valiosa e preciosa para o super-herói, a sua identidade. Atrás do uniforme azul e da máscara de bico volteado, encontramos Riggan Thompson, uma celebridade de Hollywood marcada por seu personagem. O ator ganhou grande reconhecimento e uma coleção de admiradores nas vestes desse homem-pássaro, entretanto, a fama não foi suficiente para que o vazio existencial que nos consome fosse sanado. O personagem marcou de forma significativa a sua vida de duas maneiras. No âmbito profissional, Riggan não ficou conhecido como o ator que era e sim como Birdman, o seu único personagem de sucesso. Já na esfera pessoal, frustrado por essa impotência profissional e sua decadência posterior, Birdman se tornou um alter ego pelo qual o ator imaginava voar, movimentar as coisas com telecinese e, principalmente, ouvir e conversar. Nessa confusão psicológica é que acompanhamos o desenrolar dos ensaios de uma peça que Riggan iria estrear na Broadway, a última chance de se mostrar como bom ator e recuperar um sucesso dissipado. Apostando todas as fichas na peça, vemos a busca desesperada de uma subjetividade perdida em se recolocar e se afirmar como substância. Riggan queria mostrar que não é Birdman, para isso precisaria se provar como ator e, antes de tudo, como indivíduo; precisaria passar pelo crivo da crítica implacável, já formada pelos pré-conceitos que separa o erudito do blockbuster; precisaria mostrar-se capaz de ser reconhecido como pessoa humana, autônoma, independente que se expressa por sua arte e não como um personagem de ficção que toma a sua personalidade; precisaria ultrapassar o passado de fama que o priva de uma vida presente. Riggan precisava vencer o super-herói a quem deu vida, e, que em sua vida, tornou-se vilão.

Ao querer ser o herói de sua própria vida, Riggan precisaria de um fiel escudeiro, quase todo herói tem um. Há muitos candidatos, o seu agente, preocupado em ganhar dinheiro a partir de seu sucesso; a sua filha com questões edípicas à resolver, que se sente desamparada pelo pai, mas que ao mesmo tempo e do mesmo modo que ele, busca sua afirmação no mundo; o coadjuvante da peça, um ator que vende muito, no auge da fama, com a potência em palco que ele gostaria de ter. Mike Shiner com quem contracena acaba o ofuscando nos ensaios com a máscara de que a arte não imita a vida, a arte é a vida, e, tudo no palco deve ser realidade. Na aparência de que tudo deve ser real, a agressividade e dramaticidade de sua atuação que supostamente seriam verdadeiras, se perdem em sua vida pessoal carente dessa vivacidade. A aparência e a realidade se misturam de tal maneira que a própria vida parece um espetáculo, em suas provocações e arroubos de “personalidade” Shiner está a atuar o tempo inteiro, não consegue mais ser ele mesmo, torna-se apenas uma aparência do que ele poderia ser. Ao confundir-se com seus personagens, a arte deixa de ser um modo de expressão de sua subjetividade para ser o fio condutor de sua própria vida, por isso que ele mantém uma ereção em cena, humilhando e violentando a parceira ao sugerir que façam sexo aos olhos do público, e, em um dos poucos momentos de sinceridade ou um pedido de socorro do Eu, assume o medo de brochar nas investidas da filha de Riggan com quem flerta. Ao confundir-se com sua arte, a realidade lhe parece desinteressante, sua vida é quem imita a sua arte.

Nesse baile de mascaras vemos espelhos de personalidades. Em Shiner, Riggan vê tudo o que gostaria de ser, jovem, talentoso, famoso, seguro de si, e, acima de tudo, reconhecido, ainda que por polemicas e um comportamento duvidoso. Mas, ao contrário, é Shiner que caminha a passos largos para se tornar Riggan, alguém perdido, buscando afirmar a sua subjetividade. O seu comportamento é inseguro, é vacilante de uma vida que não existe e que não se vive. Shiner assume a vida de Riggan ao roubar as suas histórias pessoais que conta como se fossem suas em entrevistas. Já Riggan veste a máscara hiper-realista do companheiro no dia de sua apresentação de estreia. Ao modo hegeliano podemos dizer que ambos reconheceram a partir do espelho do Outro a sua própria mediocridade, mas isso não foi capaz de libertá-los do peso que todos carregam: o mito do herói. Cada vez mais em nossa sociedade sofremos a mediação das imagens, inclusive a que deveríamos ser, é nas aparências que perdemos nossa substância, é no simbólico que perdemos a dimensão da realidade em que vivemos; submersos por propagandas, luzes, flashes somos bombardeados por inúmeros estímulos imagéticos como nunca antes na história da humanidade e acabamos desorientados como sujeitos ativos que agem e transformam o mundo; tornamos-nos imagens circulando em um mercado fictício e virtual. O cinema de Hollywood e o teatro da Broadway são célebres exemplos dessa indústria imagética e da produção de nós mesmos como selos. As imagens ilustram padrões sociais pelo qual orientamos nosso comportamento: a necessidade do corpo perfeito, o modelo de beleza instituído, a narrativa do esportista como um herói nacional, a construção de celebridades instantâneas, consumidas e descartadas como objetos, a ilustração do inimigo da vez: o menino pobre de padrão étnico bem definido, o árabe de barba longa, o partido corrupto, e por aí vai.  Mediados por essas imagens passamos horas na academia em busca de um corpo que não é o nosso; alisamos o cabelo e nos submetemos a cirurgias para não sentirmos vergonha ao andar na rua, usamos de doping e trapaças para nos mantermos no topo e no poder; submetemos nossa dignidade humana à tortura em nome do sucesso; amarramos meninos nos postes, apedrejamos e discriminamos tudo o que é diferente do padrão e, às vezes, até nos atiramos do prédio ou na nossa própria cara como um pedido de socorro à ser transmitido ao vivo, ou aplaudido de pé pelo público que nos assiste.

Nossos atores são apenas objetos se reproduzindo e alimentando a cadeia de consumo desse sistema industrial de espetáculos e dessa maneira não conseguem se libertar enquanto sujeitos autônomos. As máscaras sempre estão dadas pelo espetáculo a ser proporcionado, é o show que dirige as ações do sujeito. Birdman é a máscara do herói ou do mito do herói, a imagem constituída de fama e sucesso que vai muito além de seu personagem, é desse passado que Riggan não se liberta. Shiner já é uma mascara versão 2.0 do próprio Riggan; uma versão atualizada da máscara anterior à espera de um modelo mais novo para substituí-la, ou seja, novamente uma máscara posta pela linha de produção. A ameaça de perder a primeira, o faz a experimentar a segunda como se fosse uma terceira máscara. Há um personagem oculto no filme que é fundamental nessa análise: o fantasma da Ópera. A referência dessa peça de grande sucesso da Broadway é nítida em diversos momentos do filme. Primeiro pela a caracterização geográfica e contextualização do enredo. Cartazes do espetáculo são apresentando na frente do teatro em que Riggan se apresentaria, situando de certa forma o ambiente. Em segundo lugar o Fantasma da Ópera é a produção mais famosa e de maior sucesso da Broadway, um clássico imortal que assombra todas as outras; um paradigma do que Riggan gostaria que fosse a sua obra e a sua carreira. Mas, é só quando Riggan entra apresado e desesperado no teatro no dia de sua estreia é que vislumbramos o fantasma da Ópera como um personagem oculto. A câmera se fecha na porta do teatro mostrando o banner da peça em destaque com o rosto de Riggan; parada, ela acompanha a passagem de tempo do dia para a hora do espetáculo e só é interrompida quando as pessoas saem elogiando o primeiro ato. Nesse meio tempo em que vemos a luz do dia sendo substituída pelas luzes artificiais da noite que iluminam o cartaz, vemos no rosto de Riggan o reflexo da máscara do Fantasma da Ópera, espetáculo apresentado à frente. Durante a peça estrelada por Riggan o fantasma da Ópera entra em cena, incorporado no sacrifício perante a traição da uma mulher amada. A fantasia sai do texto e acaba no hospital em que o ator acorda dias depois com o rosto desfigurado, um nariz novo e um curativo que simulava uma máscara. Em seu desespero, Riggan se tornava compositor Erik Destler, o fantasma da Ópera, uma pessoa que tal como ele vendeu sua alma para o diabo em nome da imortalidade do sucesso. A indústria fez seu papel, a imortalidade do seu gesto veio estampada em todos os jornais e agraciada pela critica e pelo público; o sucesso estava de volta, mas será que de fato ele conseguiu o que queria? Quando Riggan tira a máscara de curativos em frente ao espelho, não se reconhece mais; o que estranha não é seu novo rosto, mas seu ser, ele já não era o mesmo. Birdman sentado ao seu lado, no vaso sanitário, era a confirmação de que o preço pago pelo brilho e pela imortalidade do sucesso era viver eternamente com a sombra do passado. Logo a sua peça e sua suposta inovação estética também se tornaria mero passado. O passado já estava dado porque ele não poderia nunca mais repetir o que fez sem abrir mão de si próprio, mas também porque não hesitaria em ultrapassar esse limite se solicitado; de todo jeito ele viveria como uma sombra de seu passado. Miseravelmente, a subjetividade de Riggan morria de uma vez por todas esmagada pela sua necessidade de sucesso. Agora ele também era um fantasma se esvaindo no ar como um sopro do que foi em vida.

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