A vida após a morte da arte
01/07/2015 Deixe um comentário
O que acontece depois da morte nós não sabemos responder. Mas o que não sabemos, podemos sempre imaginar. A imaginação é uma faculdade constitutiva da nossa capacidade de pensamento e de nós mesmos enquanto seres humanos, com ela que realizamos nossos sonhos, projetamos nossos desejos, mudamos o mundo. A imaginação serve tanto à ciência no desenvolvimento de modelos teoréticos, quanto à filosofia na sua pretensão de pensar além do conhecido; serve tanto às disciplinas da mente e a estruturação psíquica do sujeito, como ao expressar do considerado socialmente “louco”; serve tanto à cultura que colore um povo quanto às artes que nos levam a novos mundos. As vezes nem nos damos conta, mas imaginação é própria do dia-a-dia, para além dos fatos crus que nos circunda a todo tempo nas ruas, no trabalho, nas nossas tarefas, nos noticiários e agências de notícias é natural e saudável que nós possamos sonhar, fantasiar, imaginar um futuro melhor, uma vida diferente. Articulamos nossos projetos presentes sempre em uma promessa de futuro, que nada mais é do que uma imaginação. Muitas vezes até guardamos todo nosso passado e presente, como diz Caetano Veloso, para o dia de amanhã. Vivemos para o amanhã com a promessa do paraíso, do céu, de outro mundo. Essa imaginação nem sempre é própria apenas da religião, muitas vezes a filosofia se apropria dela. O que são especulações metafísicas além de imaginação articulada em um pensamento lógico sistemático. Em nome da promessa de um novo mundo, para além do físico, a religião e a filosofia interiorizam em nós muitas de suas normas, a ideia de bem e do mal, da predestinação, do trabalho árduo, da lei moral de um lado, de outro, a existência de Deus como certeza de que nós existimos, como condição de possibilidade de todo conhecimento. A imaginação aqui está no nosso mundo servindo a sua continuidade do hoje, uma projeção do amanhã presa ao ideário articulado de poder e organização social do presente. Ela não deixa de ser um pássaro migratório para o futuro, mas um pássaro limitado pelas grades que o cerceiam nas gaiolas do presente. Tão íntima de nós, podemos imaginar para onde vão a religião e a filosofia após a morte. A uma nova ordem social? Claro que não, a pergunta não é para onde a morte da religião e filosofia nos leva, mas para onde elas vão, o que não é tão difícil de imaginar. Todos nós sabemos que a religião que morre ascende aos céus, e o espírito filosófico morto ao estatuto da Verdade. Mais difícil é fazermos a mesma pergunta em relação à arte. Muito porque apesar da imaginação aqui ser mais genuinamente profunda e humana, ela foi estranhada de nós. Tão envolvidos pelas articulações e regras que a razão nos impõe, nós nos esquecemos de imaginar livremente para além da jaula da consciência. Nas artes a imaginação é livre, livre associação, livre expressão, livre sentimentos, livre possibilidades. Nela imaginar é externar nossa subjetividade e fazer nossa conexão com esse mundo que ela visa transformar a partir da sensibilização do olhar. Na arte a imaginação promove a unidade entre o mundo objetivo e nossa existência subjetiva, é por ela que podemos ser no mundo. Por isso que é a ela que nos dirigimos tentando imaginar para onde está a arte após sua morte. Certamente não está no pós-moderno, onde jaz o seu corpo como um pastiche do que foi no passado. Existe vida após a morte da arte?
Para que a arte descubra o seu destino pós-morte era primeiro necessário morrer, e ela foi morta vítima da razão dos dadaístas. Um crime premeditado e proposital, nada haver com impulsos violentos de uma geração rebelde com pouco respeito e apreço aos conceitos institucionalizados de arte e de sua aura. O Dadá emergia como repulsa ao contexto social que fora marcado pelas vidas destroçadas pela Primeira Guerra Mundial, uma rejeição a um conceito de arte tradicional que estavam associados a uma classe burguesa que consideravam responsáveis pelo derramamento de sangue. A arte morria como uma baixa de guerra em um tempo que buscava o equivalente estético ao declínio de uma classe dominante burguesa e o mundo que ela representava. Nesse contexto, o crime era devidamente justificado e racional. O assassino foi a Monalisa com Bigodes com um urinol em nome de R. Mutt, no salão da Sociedade de Artistas Independentes. Marcel Duchamp, com a audácia de desenhar bigodes em um cânone da arte clássica e inscrever um mictório com a assinatura do fabricante em uma exposição, ironizava o estatuto instituído das artes. Os objetos escolhidos não eram, entretanto, a esmo e tinham um alvo bem definido. Na escolha de um vaso sanitário e um cânone da arte a provocação é obvia, mas e no caso de uma roda de bicicleta em um banquinho, o que isso nos diz? A escolha de objetos que comporiam os ready-mades deveria se guiar racionalmente em uma regra, na percepção do artista eles deveriam estar além dos valores estéticos e julgamentos do gosto, do bonito e do feito, do belo e do grotesco, deveriam ser objetos inócuos que conceitualmente nada deveriam dizer. Nesse sentido é que Duchamp, movido pela razão, ia além; mais do que ridicularizar o sistema instituído da arte, ele atingia seu coração: o Belo. A arte provocativa do dadaísmo matava a arte como conhecíamos até então, ao transferir as discussões estéticas da essência do Belo para uma pergunta anterior: o que é a arte? A arte passava a ser definir pelo conceitual, o que importava era o conceito e não mais a sensação, a ideia contida na obra e não mais o que ela representava aos olhos, o exercício do pensamento que ela despertava e não mais a postura passiva do espectador frente a obra de arte tida como intocável, a arte estetizava a vida não mais a vida sacralizava a arte. Com isso, o dadaísmo cumpria a profecia de Hegel sobre a morte da arte: “o fim da arte consiste na conscientização da verdadeira natureza filosófica da arte”, ou seja, no momento em é a razão diz o que é ou o que não é arte, se tudo é arte ou se nada é.
Aos passos do dadaísmo e por que não também de Hegel é que encontramos o Surrealismo logo em seguida. Ao mesmo tempo em que podemos localizar dadaísmo e Surrealismo historicamente como irmãos que seguiram caminhos diferentes, logicamente podemos inclusive forçar uma sucessão umbilical entre eles como sugerem alguns críticos de arte. O Surrealismo aparece poucos anos depois do Dadá com o manifesto de Breton em 1924, um pouco antes da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, como uma oposição a essa sociedade que racional e utilitarista iria cair no mesmo erro pela segunda vez, a Segunda Grande Guerra. Ainda marcado pela barbárie da Primeira Guerra, o Surrealismo foi uma resposta a esse mundo completamente diferente a radicalização dadaísta. Muito mais influenciados pelas ideias da psicanálise freudiana que aparecera e ganhara força no início do século, os surrealistas eram pura sensação, espontaneidade e pulsão. A arte não estava ali para ser racionalizada e esclarecida ao nível da consciência, o mundo monetarizado já era racional demais e vimos onde isso foi dar. O Surrealismo queria expressar o inconsciente em duas dimensões, a psíquica, do inconsciente humano que se estruturava por imagens e desejos e que, portanto, teria na arte “um meio mais adequado para trazer a superfície conteúdos profundos do inconsciente” (Argan, Arte Moderna, p.360), e também uma dimensão estética, o inconsciente da própria arte onde não haveria distinção entre realidade objetiva e subjetividade, onde as figuras não apresentam ainda a forma representativa que a consciência lhe dá, onde elas estão interligadas em unidades e livre associação imaginativas. A inconsciência é o mundo do onírico, da fantasia, da imaginação por onde a arte deveria caminhar, o Surrealismo nasce como uma dissolução da forma como uma representação da realidade consciente, mas também como um equivalente estético ao mundo objetivo que aos nossos pés também estava se dissolvendo.
Nesse âmbito de espontaneidade, fluxo do desejo e imaginação é que podemos concordar com Breton ao sugerir que o artista espanhol Joan Miró fosse “o mais surrealista de todos nós” (Naves, Experiência Crítica, p.91). Estrelas que parecem asteriscos, figuras humanas em forma em traços de bonecos palitos, cores primárias e alguns borrões. Em sua ingenuidade as obras de Joan Miró não são exatamente o que esperamos ver como representante dessas Belas-Artes que aprendemos e interiorizamos desde cedo a reconhecer figurativamente e contemplar como Belo, mas também não parecia nada com o conceito ativo de arte depois de sua morte. Com um trabalho que muitas vezes parecia ter sido feito por crianças em alguma aula de arte da escola primária, seria um provocação de inspiração duchampiana pinturas tão infantis? Com uma formação sólida na École de Paris a fluidez e falta de preocupação de sua pintura não parecia pouco caso com a tradição do Belo, mas uma redescoberta dele, de um Belo ainda puro que a arte deixou quando passou a ser racionalizada. Não por acaso, Miró pintava como criança, o seu espírito mantinha-se fiel a espontaneidade e imaginação que lhe são próprias antes de serem podadas. No entanto, não é qualquer criança que botasse as asas da imaginação para fora que pintaria como ele, Miró pode ser invejado pelo que talvez seja mais caro a qualquer grande artista, uma linguagem própria que apesar da simplicidade não há quem não reconheça e não há quem consiga copiar, sob a pena de perder a espontaneidade e a expressividade que carrega o gesto do artista. Miró resgata essa unidade afigurativa do inconsciente nos trazendo a explosão da pulsão em seus traços e imagens que se metamórficas em seus significados e sentidos. Na simplicidade de uma palheta de poucas cores vibrantes e traços negros diretos e carregados, algo que parece simples se torna absolutamente complexo em sentidos, signos e significados. Muitas vezes reconhecemos um ou outro signo, entre luas, pássaros, sol e mulheres, mais tantas vezes a mulher é pássaro, o pássaro é sol, o sol é lua e a lua não vem no título da obra. As figuras simbólicas de Miró mudam de identidade na medida em que nós mudamos nossos pontos de vista, um simples pássaro torna-se “de uma perspectiva ou de outra, um elefante arrojando-se, uma foca, um barco, um cavalo, uma motocicleta, uma tartaruga nadando e uma mulher deitada de costas” (Sylvestre, Sobre Arte Moderna, p.224.), quem sabe Miró não transforme nós mesmos em pássaros na nossa liberdade para imaginar, na nossa capacidade de deixar a cabeça voar. Com esse espírito é que devemos passar por sua obra, só com essa leveza que a imaginação nos dá que podemos entrar em seu mundo onírico e explorar a riqueza de uma pintura que não foi feita para ser compreendida, mas para ser contemplada como um novo registro do que é o Belo.
Como podemos entender esse novo registro do Belo? Nós mesmos não sabemos, apenas intuímos. O crítico nunca poderia compreendê-lo pela forma que se racionaliza a obra ao interpretá-la de explicitá-la em suas categorias estética. Claro, por tudo que dissemos, não poderíamos deixar a imaginação de lado, mas como dar fim a nossa história sem explicar esse ponto? Sem podemos explicar, podemos especular. O racional volta aqui, mas não como dono da narrativa, e sim como um personagem. É a imaginação que o solicita e que o dirige para relações que muito provavelmente não conversam e fazem pouco sentido juntos, o racional aqui é cobrado a preencher o repertório que a imaginação intuiu, ele é o detetive que, nessa história de assassinatos, mortes e desconhecidos irá investigar as suspeitas da imaginação. Nesse sentido é que o desagravo que Miró provavelmente nos faria, poderia ser desculpado, ao compreendê-lo racionalmente, não teríamos o entendido, teríamos apenas imaginado que o conhecemos, por outro lado, a pena de muito provavelmente não termos compreendido muita coisa é nos permite empreender o racional como um exercício da imaginação no final de nosso conto.
Nessa dialética em que o racional pode ser imaginação e a imaginação pode ser racional é que resgatamos Hegel para recontar o pedaço da história em que paramos. Em primeiro lugar, com um pouco dessa imaginação, poderíamos pensar o racional dadaísmo e o onírio Surrealismo, apesar da oposição, mais intimamente ligados a partir de uma lógica hegeliana de negação determinada. Grosso modo, a dialética hegeliana apresentava que o progresso do espírito se dava por uma negação interna de um termo A que expunha o seu limite, essa dificuldade posta internamente daria origem a um novo termo A’ como negação de A. Todavia esse termo A’ para se afirmar como nova posição positiva da consciência deveria não apenas aparecer como negação de A, mas principalmente se negar enquanto negação do termo A. Nesse sentido, teríamos na história da arte um conceito de Belo que chegara ao seu limite a partir do questionamento dadaísta sobre o que é arte. A dúvida estrutural e existencial apresentada pela morte da arte tem como uma das respostas Miró como uma afirmação de novo registro do Belo. O Belo volta ao circuito das artes, mesmo após a sua morte, não mais como o Belo que conhecíamos, mas atualizado positivamente em seu lugar, ele é negação do conceito tradicional de Belo e ao mesmo tempo negação determinada da morte da arte. No entanto, não podemos tomar esse novo registro do Belo como um fim, uma consequência que aparece em uma relação de causalidade entre contraditórios se ocupando do espaço vazio deixado pela arte que se foi; antes de tudo esse novo registro estético do Belo é uma revelação para a própria arte de uma nova figura da consciência artística.
Por sua vez, em segundo, essa nova figura da consciência que Miró representa a história da arte está em um estágio mais avançado do que se imaginou. Como um marco da história da arte, não é tão improvável imaginarmos Miró como uma nova figura da consciência na história da arte, mas essa figura da consciência segue justamente a unidade da arte com a sua totalidade, a tomada na morte da arte, pela consciência de si e para si, o Absoluto. Se o Absoluto é tudo, o que haveria após ele? Quando consideramos que a arte chegou ao seu fim ao autocompreender-se como espírito Absoluto, devemos também nos lembrar de que o Absoluto em Hegel não só já está na consciência que ainda não se descobriu enquanto consciência de si e para si, como pressupõe enquanto consciência que se reconhece como saber de si o saber da consciência, um constante retorno ao início do caminho percorrido. O Absoluto só aparece no fim da história, mas já está em seu começo; o todo implica na rememoração de todo o caminho percorrido, em todo progresso e progressão. Da mesma forma em que podemos imaginar que com Duchamp a história da Arte chega ao Absoluto a partir da crise estrutural da própria natureza da arte a partir do Belo, é em Miró que vemos a volta desse Absoluto ao começo: a pré-história da arte onde o desejo inconsciente, os símbolos e a espontaneidade ainda eram primordiais. Com essa linguagem quase que rupestre e muita mais imaginação que nós, Miró, não apenas resgata a arte a um estado mais puro e essencial como queriam os surrealistas, ele dá luz a um novo Belo, retomado aqui como um conceito que se modificou internamente apresentando outro momento da história da arte, a atualização da história da arte em uma nova figura da consciência, a volta do Absoluto a um novo começo em que se abrem as possibilidades de outro devir e uma nova história da arte. Dessa maneira é que Miró dá vida à arte após a morte da arte.